sexta-feira, 22 de março de 2013

Passeio - Fernando Sabino


 - Aonde vamos, papai?         

  Seguiam devagar, de mãos dadas, em direção ao túnel. Ele olhou em redor, desorientado.          
   - Dar um passeio...
Vamos passar pelo túnel – resolveu.
 – A pé, você já passou pelo túnel a pé?           
  - Não – disse a menina, extasiada. Num passeio com o pai, tudo era motivo de prazer
– A gente pode?            
 - Pode. Tem um lugar do lado que é para a gente passar.             
- De que é feito o túnel, papai?          
   De que era feito o túnel? Essa era uma pergunta meio tola. Tinha oito anos e parecia inteligente... O túnel era um buraco na montanha, não era feito de nada.           
  - Ah...            
 De repente, porém, ela o surpreendeu:      
  - Túnel deprime muito a gente.             
- Deprime? Com quem você aprendeu isso?            
 - Com mamãe: nós duas andamos muito deprimidas.         
    Positivamente, a mulher deveria ter mais cuidado com o que falava. O que seria daquela menina, sem ela perto, para... para.          
   - E por que vocês andam deprimidas?             
- Não sei: acho que é porque não temos vontade de comer:            
 Era preciso falar – e falar com jeito, sem escandalizar a menina, assustá-la para a vida. Não dê motivo fútil – era o que recomendavam. O que uma menina de oito anos entenderia por motivo fútil?           
  - Aonde nós vamos, papai?          
   Saíram do túnel. O melhor era procurar um lugar calmo, sossegado. Uma confeitaria, talvez.            
 - Você quer tomar um sorvete?          
   - Mamãe disse que está muito frio.            
 - Não tem importância – disse ele apressadamente:
 - Vamos tomar um sorvete.            
 Satisfeitos ambos com a resolução, entraram num ônibus e saltaram à porta da confeitaria. Ela se deteve junto à vitrine:         
    - Olha, papai, que bonito.             Era uma horrorosa caixa de bombons em forma de coração.             
- Dou de presente, você quer? – e puxou-a pelo braço, em direção á entrada. Dar-lhe-ia tudo que quisesse, como a comprar sua simpatia para o que tinha a dizer.           
  Mamãe falou que não posso comer bombom senão não janto.          
  Hoje você pode, sim.         
    A mãe também estava exagerando, oprimindo a menina. Não tinha nada de mais comer um bombom de vez em quando. E aquele dia não era um dia comum – pensou sem perceber que violentava as regras intransigentes de educação da filha que ele próprio firmara e que a mulher agora não fazia senão obedecer. Oprimido a menina. Nós duas andamos muito deprimidas.         
    Pessoas entravam e saíam da confeitaria, movimentada àquela hora da tarde. Moças e rapazes esperavam mesa, conversando em grupos, alguns olharam aquele homem tímido, meio curvado, que entrava com uma menina pela mão. Sentiu-se constrangido no ambiente elegante da confeitaria, sentiu-se velho entre aqueles rapazes de suéter e aquelas moças de calça comprida, como rapazes. Em dez anos a filha estaria assim. Dez anos passam de pressa. Dez anos haviam passado.           
  - Aqui tem sorvete também. Não está bom?           
  A menina sacudiu a cabeça, submissa:         
    - Lá na frente era melhor..     
        Lá na frente não tem lugar.          
   - Mas aqui não tem bombom.             
- Ah, me esqueci de sua caixa de bombons! Espere aí que vou buscar.             Sentou-se a uma das mesas e ordenou ao garçom:             
- Traga um sorvete para esta menina, Que sorvete você quer, minha filha? De coco? Chocolate?         
    - Milk shake – disse ela, com displicência, o garçom logo a entendeu. O pai olhou-a espantado:            
 - Que é que você pediu?             
- Milk shake. Venho aqui sempre com a mamãe e ela pedi milk shake.           
  - Então espera aí direitinho que vou buscar seus bombons, volto já.           
  Passou à outra parte da confeitaria, dirigiu-se ao balcão:       
      - Quero aquela caixa de bombons que está ali na vitrine, aquela feia, em forma de coração.      
       De longe avistou a filha, perninhas dependuradas, a chupar o canudo do refresco, olhos vagos, distraídos, inconstantes – os olhos da mãe.           
  - Demorei? – e sentou-se ao lado dela.            
 - Fiquei com medo de você ir embora.           
  - Então eu ia fazer uma coisa dessas, minha filha, ir embora?          
   A menina apontou a mesa com os olhos, sem abandonar a palha do refresco:           
  - Pedi um milk shake para você.          
   Ele se ajeitou na cadeira e acendeu um cigarro. Chegara o momento – como começar?         
 - Você sentiu saudade do papai?        
- Não, porque demorou pouco. Comprou?    
  - Comprei, olha aqui – e exibiu-lhe o embrulho.      
 - Vou levar para mamãe – resolveu ela, subitamente inspirada.
– Pode?            
 - Pode – e ele passou a mão pelo rosto, desconcertado.
 – Um presente para ela.           
  - Meu, não: seu – fez a menina, como a experimentá-lo. Não respondeu. Ela voltara a chupar o canudo de palha, agora soprava para dentro do copo, fazendo espuma no refresco.        
  - Eu pergunto se você sentiu saudade de mim não foi agora não, foi quando estive viajando.      
 - Você esteve viajando mesmo?            
 Meu Deus, como começar? Era preciso começar, já se fazia tarde, o refresco se acabava, em pouco tinha de levá-la de volta para a mãe. Estivera viajando sim, por que haveria de mentir?            
 - E chegou assim, sem mala, sem nada?             
- É porque eu cheguei... Isto é... Olha aqui. Toma este outro também, papai não está com vontade – e passou-lhe o copo.             
- Assim não janto e mamãe zanga – disse ela, indecisa, a boca a meio caminho do segundo refresco.             
- Não tem importância. Diga que fui eu.            
 Não tinha importância – o importante era dizer, contar tudo, escandalizar, violentar a inocência da menina. Assim recomendavam todos hoje em dia: as crianças devem saber de tudo, porque senão inventam por conta própria, e é pior. O que não é capaz de inventar uma criança? Antigamente na escola, entre as amigas, a criança se sentia a única, mas hoje em dia podia-se dizer que era a regra, tantos casais separados! E sacudiam a cabeça, convictos: sobretudo não de motivos fútil.             - Escuta, minha filha, você é uma mocinha, já deve saber das coisas.            
 Voltava à formula da mocinha. Agora era continuar, custasse o que custasse. Daria tudo para não viver jamais aquele instante. Pensou se não era bom tomar antes um conhaque.           
  - Estive viajando sim, mas não é por isso que não estou morando mais com você. Agora, por exemplo, já cheguei e não vou dormir lá em casa.           
  - Onde é que você vai dormir?             
- Noutro lugar – respondeu ele, evasivo: não pensava em dizer onde estava morando, ela poderia querer ir com ele.             
- E quem é que vai dormir com a mamãe?             
A pergunta apanhou-o desprevenido, sentiu-se jogado de súbito naquela atmosfera de ansiedade que precedera a separação.             
- Me diga uma coisa, filhinha – ele não resistia, e se inclinava, ansioso, sobre a mesa, segurando a mão da filha:
- Você disse que vem sempre aqui com sua mãe... Sozinha? Não vem ninguém mais com vocês?             A menina limitou-se a negar com a cabeça, sempre tomando o refresco.             
- E lá em casa? Tem ido alguém visitar mamãe?             
Desta vez ela sacudiu a cabeça afirmativamente.             
- Quem?            
 Desgarrou os lábios da palha já amassada para responder:             
- Vovó.             
Ele chamou o garçom e pediu um conhaque. Voltou a acomodar-se na cadeira, perturbado. Não interessava! Tudo acabado para sempre. Agora restava contar para filha:             
- Sabe, filhinha, você já é uma... Bem, isso eu já disse. Quero dizer o seguinte: você sabe que papai gosta muito de sua mãe...             
Antes de mais nada, deixar bem a mãe: era também o que aconselhavam. Tomou de uma só vez o conhaque e prosseguiu:             
- Sua mãe é muito boa, sabe? Muito boa mesmo, gosta muito de você, você deve ser obediente e boazinha para ela.             Não, não era isso. Precisava dizer logo, ou não diria nunca:            
 - Papai gosta dele e ela do papai. Mas acontece sabe?, que ela é muito diferente do papai, gosta de uma coisa, papai de outra...             
Motivo fútil. O que não seria motivo fútil?             
- Bem, eu e sua mãe gostamos muito um do outro mas eu andava muito cansado, trabalhando o dia todo, sua mãe muito nervosa, nós vivíamos discutindo... brigando...             
- Se gostam, por que é que brigam?             
Foi a única vez que a menina o interrompeu. Dali por diante ficou calada, olhando para outro lado, e ele prosseguiu como pôde, dizendo: ela não tinha amiguinha no colégio? Não gostavam uma da outra? e de vez em quando não brigavam? Pois então? Com eles também era assim. E para viver junto era preciso não brigar nunca, era preciso ser muito bom um para o outro, era preciso...             
- Minha filha, você não está me escutando.             
- Estou sim, papai...             
A menina terminara o refresco e agora riscava distraidamente a mesa coma palha umedecida.             
- Que é que estou dizendo?             
Ela voltou-se para ele:             
- Está dizendo que você e mamãe vão se separar.             
Ele respirou fundo, num misto de angústia e alivio:             
- Mas vou visitar vocês sempre...             
- Eu se.            
 - Posso levar você para passear.             
-Sei.             
-Posso... Posso...             
Ela se levantou, puxando-o pela mão:             
- Papai, me leva embora que já está ficando tarde.             
- Minha filha – disse ele, confuso e comovido, e não resistiu, tomou-a no colo, abraçou-a com força, enquanto lágrimas lhe enchiam os olhos. Quis falar e as palavras se prenderam num engasgo. Um casal sentado ao fundo da confeitaria, mãos dadas sobre a mesa, voltou-se curiosamente para vê-lo. Ele depositou a menina no chão, sem que ela oferecesse resistência. Chamou o garçom, pagou, reteve a filha:            
 - Olha, você está esquecendo os bombons.            
 Saíram, e a menina o conduzia pela mão, como a um cego.    

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...