Para Bachelard, "o universo tem, para além de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o paraíso". Será que Deus, diante da escuridão e da confusão que era o universo, não sonhou com o paraíso (o seu jardim), repleto de cheiros de flores e ervas? Dizem os textos sagrados que as coisas que rodeavam Deus deixavam-no triste. "Foi então que ele sonhou com um jardim e compreendeu que era aquilo que o deixaria feliz, se existisse. E se pôs a trabalhar para plantar um paraíso. Terminado o trabalho, o Criador descansou, e se entregou ao puro prazer. Viu que tudo era muito bom (...) e resolveu que lugar melhor para se morar que um jardim não existe. E lá ficou, tomando prazer especial em passar em meio às plantas, à hora da brisa quente da tarde" (Rubem Alves).
Sonho com um jardim, e esse é um sonho apenas meu, resultado das lembranças plantadas dentro de mim, parentes das minhas saudades. Tudo isso para ressuscitar "o encanto dos jardins passados, de felicidades perdidas, de alegrias já idas". Todos sonhamos com um jardim. "Em cada corpo, um Paraíso que espera..."
Nos sonhos fundamentais da humanidade não havia todo o artificialismo que hoje impera. Os metais, a eletrônica, não podem roubar de nosso imaginário as florestas, as fontes, os campos, as praias, as montanhas. E também nosso mundo interior não pode se tornar metálico, sideral, vazio...
Disse o místico medieval Angelus Silésius:
Se, no teu centro um Paraíso não puderes encontrar, não existe chance alguma de, um dia, nele entrar.
O poema de Cecília Meireles revela nosso lugar e nosso destino:
No mistério do Sem-Fim, equilibra-se um planeta. E, no planeta, um jardim, e, no jardim, um canteiro: no canteiro, uma violeta, e, sobre ela, o dia inteiro, entre o planeta e o Sem-Fim, a asa de uma borboleta.
O sapo saiu sem rumo, com fome e com muita preguiça. Olhando a lua, viu voando a mais bela e miuda borboleta amarela. Parecia uma estrelinha ou uma flor voando. O sapo abriu a boca e ficou na boba espera. Na hora do bote pra engolir a borboleta, ficou parado, pasmo. De perto, a borboleta amarela era mais miuda, mais frágil e mais bela. Como destruir tanta beleza só pra encher a barriga? Era um sapo meio poeta!
Assisti ao filme O som do coração. Quer dizer, voltei a assistir. Havia passado para meus alunos do Ensino Médio, no ano passado. Lembro que havíamos debatido, após, sobre o mesmo. Dizia para eles, para além do drama do personagens envolvidos - o pai que doa o neto, quando ele nasce, e diz para sua filha, a mãe, de que ele havia morrido. O menino vivendo em orfanato, esperando ser “encontrado” pelos pais... E o jovem pai, que não sabia que tinha um filho, etc. etc. - que se ativessem, também, à mensagem que o filme trazia a respeito do lugar e papel que a música tem, ou pode ter, em nossa vida. O menino, um “prodígio” em música, tem a certeza de que vai encontrar/ser encontrado pelos seus pais através dos sons, que ele harmoniza com sua criação artística.
Nessas horas constatamos, com muita dor, a distância que separa ouvintes/saboreadores de arte de massa (ou massificada), e os gênios, com sua percepção “diferenciada” (termo usado hoje em dia também no futebol, para designar os jogadores acima da média..). Foi o que senti ontem, ao folhear um livro de história da arte, e direcionar meu olhar, por alguns segundos, às pinturas de artistas renascentistas. Há uma beleza nestas obras (seja em pintura, música, poesia, etc.), mas a possibilidade de captá-la eu não vou aprender na escola, na universidade. Nestes lugares serei apenas treinado para ver com um olhar pré-estabelecido, formatado por regras que foram pensadas pelos outros.
A sensibilidade que temos para criar ou para saborear a arte parece que vem de outro lugar, para além da educação que recebemos ao nos inserirmos numa cultura. Será inato? Não sei. A genialidade de alguém se resume na genética? De qualquer maneira, aqui estamos nós, meio zonzos com tantos sons (seja do radio, televisão, internet...), com nossos ouvidos “viciados” pelos ruídos (o que é, e o que não é música?) que teimam em se repetir, iguais para todos, sejam gratuitos ou pagos às lojas.
O cartum abaixo mostra os conflitos que surgem quando as regras são questionadas. As regras (que são convenções) são o que menos importa. O que interessa, sim, é sua aceitação pelos envolvidos. O “ideal”, numa comunidade do diálogo, é que todas pessoas tenham condições de argumentar e decidir racionalmente sobre uma questão. Aqui não, já que estão em conflito a mãe seu filho, que é uma criança. O personagem ensina uma importante lição, para nós, adultos: é contestador, e força sua mãe a apresentar argumentos sobre as regras estabelecidas. Por seu lado, a mãe está conformada com a marcha do mundo e, além disso, acredita que provocar (questionando, que seja bem entendido) uma certa desordem na sociedade vai tornar a pessoa infeliz.
A MAMÃE ESTÁ ME ENSINANDO A SOLETRAR, MAS EU NÃO ENTENDIA, E ELA DISSE QUE ERA MUITO SIMPLES: JOEL, G-A-T-O QUER DIZER GATO, E EU DISSE: POR QUÊ?
E ELA DISSE POR QUE É ASSIM, E EU PERGUNTEI POR QUE ERA ASSIM, E ELA DISSE QUE DEUS QUERIA QUE FOSSE ASSIM E EU PERGUNTEI: POR QUE W-X-Y-Z NÃO QUER DIZER GATO?
E ELA DISSE QUE É POR- QUE NÃO É ASSIM E EU DISSE POR QUE NÃO SE EU QUERO QUE SEJA ASSIM E ELA QUE É POR CAUSA DAS REGRAS...
EU DISSE QUE AS REGRAS SÃO BOBAS E G-A-T-O QUER DIZER GATO É UMA REGRA ESTÚPIDA E ULTRAPASSADA, E W-X-Y-Z QUER DIZER GATO É MELHOR E MAIS MODERNO E ELA DISSE: NÃO TENTE RE- FORMAR O MUNDO, JOEL, OU VOCÊ SERÁ MUITO INFELIZ!
E EU PERGUNTEI POR QUE AS REGRAS ANTIGAS ESTÃO SEMPRE CERTAS E POR QUE AS REGRAS NOVAS ESTÃO SEMPRE ERRADAS, E ELA DISSE: JÁ FUI PACIENTE DEMAIS COM VOCÊ, RAPAZINHO, E AGORA SOLETRE GATO DE MODO CERTO OU IRÁ PARA A CAMA UMA SEMANA SEM VER TV...
E EU DISSE QUEM PRECISA VER TV, E ELA DISSE: DEIXE DE SER MALCRIADO, VOCÊ PRECISA DE TV, E EU DISSE: NÃO PODEMOS CONVERSAR COMO DUAS PESSOAS CIVILIZADAS, E ELA DISSE QUE EU ARRANJEI ESSAS IDÉIAS ENGRAÇADAS NA RUA; FICAREI SEM TV DURANTE UM MÊS...
E EU DISSE QUE W-X-Y-Z QUER DIZER GATO.
E NINGUÉM ME FARÁ MUDAR DE IDÉIA.
A-B-C-D E-F-G QUER DIZER SOCORRO.
(Feiffer. Entre sensos e pensos. Gráfica Bahiense, 1976).
sábado, 11 de julho de 2009
Não dou conta dos sussurros à minha volta.
Os sentidos de cada ato se diluem no ar sem pensamentos pra apanhar.
Tantas opiniões bem ditas sobre novela, futebol e política são compartilhadas pelos sujeitos diante dos jornais rádio e TV.
Tudo se anuncia e escapa em cada gesto ou num piscar de olhos.
Alguns séculos antes de Cristo os filósofos afirmavam que era fundamental, dentre outras coisas, a busca pelo conhecimento de si próprio. Tanto naquela época, quanto hoje, pergunta-se, também, sobre a sociedade e o universo, a origem e fim, o todo e o nada. Mas isso pouco vale, se não se consegue saber quem somos – Michael Jackson aí está para mostrar o quanto o homem é complexo, e pode se perder nos labirintos de sua alma.
O que fazer para nos conhecermos melhor? Nos últimos séculos as ciências desbravaram imensos territórios, na busca pelo conhecimento. Um dos territórios investigado foi o da subjetividade, cabendo às psicologias e à psicanálise essa tarefa.
Costuma-se dizer que os outros auxiliam na compreensão de nós mesmos. Seus comentários podem iluminar nossos auto-julgamentos. Bem, desde que tenhamos coragem de nos voltarmos para nós mesmos!
No livro de Valéria Belém, Vê é uma caixa, algumas crianças resolvem fazer uma brincadeira: comparar seus colegas e amigos com objetos. “Vê é uma caixa, Mauro é puro livro, pois está sempre cheio de histórias, e Diná é como um chiclete”. Como reagiu cada um, ao ser comparado com TAL objeto? Vê, passado o susto, decidiu assumir “seu jeitinho caixa de ser”. Foi além: começou a fazer caixas, para dá-las de presente.
Essa atitude desencadeou uma série de eventos afetivos nas pessoas que eram de seu convívio. “Todos a-ma-vam” os presentes que recebiam, inclusive uma mulher mal-humorada, que morava na rua da escola e que tinha um jardim. “Tanto azedume não combinava com flores perfumadas!” (p. 18). Bastou ela receber de presente uma caixa, do formato e do tamanho de uma chave, que seu coração se abriu.
Essa história nos permite questionar a respeito de quantos sentimentos e emoções trancamos na nossa caixa interior, o nosso coração, e que deixamos de dividir, perdendo a oportunidade de fazer novas amigos, seja no trabalho, nas escola ou até nossos vizinhos.
Os livros também são caixas que, ao serem lidos, nos presenteiam com aventuras, dramas, suspense, comédias, tragédias... São “caixinhas de surpresa” que vão abrir, não apenas nosso coração, mas também a nossa mente. “Caixinhas de surpresa” podem ser também as pessoas, pois suas atitudes deixarão de lado a indiferença, alterando a ordem dos acontecimentos, como fez VÊ, na história de Valéria Belém.
Com mais de cem livros infantis publicados, Ricardo Azevedo, nascido em São Paulo, considera-se um “bagunceiro da linguagem”. Segundo ele, poetas são sujeitinhos inconvenientes, que gostam de fazer bagunça e mudar tudo de lugar. Bagunçam a verdade, mexem com a inocência das palavras, seu som, seu peso, sua cor e seu ritmo que, muitas vezes, se insinua entre duas sílabas. Dessa forma, contrariam hábitos e convenções, “acordando” a linguagem de uma espécie de sono, enriquecendo-a com novos sentidos.
Esse “bagunceiro” não pretende explicar, mas sim partilhar suas inquietações: sobre violência, amadurecimento pessoal, o mistério que são os outros e a própria poesia.
POEMA DO TEMPO
Tem o importante que sabe que é comum Tem o comum que se acha importante Tem o diamante que sabe que é pedra Tem a pedra que se acha diamante Enquanto isso, o tempo passa levando
comuns, importantes, pedras e diamantes
Ao lermos em voz alta o poema Eu passei um dia inteiro, percebemos que o texto possui um ritmo, uma cadência que organiza as frases: isso é muito comum em poesia. De acordo com Ricardo Azevedo, esse gênero esteve ligado à música em diferentes circunstâncias históricas.
Eu passei um dia inteiro pra fazer essa modinha, você chega e vem dizer que a modinha não é minha?
A modinha é minha, sim, quem não sabe, vai saber, não tem como duvidar, vou provar por a mais b.
Veja só o jeito dela: confusa, desajeitada, coitada, destrambelhada, capenga, desengonçada.
Basta olhar pra cara dela: disforme, deselegante, quadrada, mal-ajambrada, mixórdia marca barbante.
Rima pobre, manquitola, arremedo incompetente, tentativa que não cola, só amola, infelizmente.
Sem assunto, sem idéia, banal, batida, bisonha, lengalenga, logorréia, sem sentido, nem vergonha.
Tal bobice é um bagulho é tolice atrapalhada, é só burrada e barulho, de poesia não tem nada.
Vou parando por aqui, já chega de picuinha. Quero ver quem vai dizer que a modinha não é minha!
Ao ser perguntado sobre “o que é a poesia”, Ricardo Azevedo diz que o ser humano é um ser que pergunta, e a poesia tem a ver com isso. “Para responder a suas constantes indagações, o homem inventou as religiões, as ciências, as filosofias e também as artes. Vejo a poesia e a própria literatura, ou seja, as artes feitas com palavras, como formas de perguntar, interpretar, discutir e de compartilhar, por meio da ficção, assuntos que emocionam, encantam ou perturbam a todos nós”.